quinta-feira, 25 de junho de 2009

"A Bíblia é antes de tudo um território literário."

A Bíblia é antes de tudo um território literário. De origem oral, as suas histórias eram contadas e conservadas de geração em geração. A dada altura passou-se à escrita dessas histórias. A conservação por escrito não foi apenas um ditado, houve uma procura da palavra exacta, da palavra luminosa capaz de explicitar significados que não são simplesmente instrumentais - como se se procurasse que a palavra fosse também um lugar da criação. Por exemplo, no Génesis conta-se que Deus criou o mundo pela palavra e, de certa forma, o autor do Génesis, ao contar a criação do mundo pela palavra, o modo como o faz é tão prodigioso, tão intenso que é como se o mundo voltasse a ser recriado quando o livro foi escrito e de cada vez que é lido. Aquele conjunto de palavras, aquela composição quase musical de palavras, permite-nos sondar o imperscrutável, o mistério, a origem que é sempre um lugar sem palavras, mas que estas palavras como que nos dão a ver. É nesse sentido que a Bíblia é um lugar literário, porque sendo constituída por um conjunto amplo de livros (porque a Bíblia não é um livro, é uma biblioteca), é também um lugar para o qual conspiraram dezenas de escritores, entre eles grandes poetas, poetisas, e o génio do povo hebraico, um povo de narradores. A Bíblia é por isso uma espécie de grande reservatório de experimentação de escritas pelo que encontramos ali todos os géneros. Desde tratados políticos a memórias familiares, de vozes solitárias e dos exilados às canções de corte, de textos proféticos às palavras segredadas de juramentos e rezas. A Bíblia é um lugar de experimentação literária. Para um leitor do século XXI, reencontrar-se com a Bíblia é de certa maneira reencontrar-se com o poder da escrita.
José Tolentino Mendonça

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